Continuamos com a nossa rubrica “A par e passo”.
Uma proposta para nos ajudar a entrar no coração de cada aparição da Mensagem de Fátima.
Para este mês de julho trazemos uma reflexão, sobre a terceira aparição de Nossa Senhora aos três pastorinhos na Cova de Iria.
Deixemo-nos acompanhar pelas palavras da Ir. Filipa, que nos oferece uma leitura a partir de dentro e por dentro desta aparição
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O coração da (nossa) História
A narração da aparição de julho de 1917, na Cova da Iria, apresenta-nos uma imensidão de imagens intensas que nos colocam frente a frente com o coração do Segredo de Fátima, da História, da nossa própria vida. Um olhar atento sobre este coração do segredo permite-nos entrar numa harmonia marcada ao ritmo de três tempos: um contexto (antes), um conteúdo (durante), e um compromisso (depois), que ressaltam da experiência que Lúcia, Francisco e Jacinta tiveram nesta aparição.
Antes da aparição, em jeito de contexto, descobrimos a luta paradoxal própria do chamamento de Deus. Por um lado, há uma força que repele, que deixa no espírito uma nuvem de verdadeiro medo e aflição, que pode levar ao isolamento e afastamento dos outros, a desejar um canto solitário. Com Lúcia, este sentimento de forte resistência fê-la inclusive sentir aborrecimento da companhia de Francisco e Jacinta, os mais íntimos confidentes. Simultaneamente, há uma força que atrai, que não é nossa, não nos pertence, e que é certamente mais forte que o medo. Por isso, Lúcia nos conta que ao aproximar-se a hora de partir para o encontro marcado com Nossa Senhora, sente-se de repente impelida a ir, por uma força estranha, à qual não era fácil resistir. Da parte do Francisco e da Jacinta, a certeza era total, não podiam faltar à chamada e Lúcia era a porta-voz deste Corpo de testemunhas. Por isso, afirmavam rendidos: “Sem ti não nos atrevemos a ir” (Memórias I, 86). De certo modo, aqui se antevê que a experiência de ser portador de tão grande Segredo tem de ser vivida em espírito de comunidade.
Durante a aparição, no seu conteúdo, temos a descrição do Segredo apresentada em tríptico, numa leitura que propomos à luz do texto evangélico das Bodas de Caná (cf. Jo 2, 1-12). Em Caná, temos um casamento, como símbolo das núpcias e da Aliança que Deus quer selar connosco, seu povo eleito, tal como o fez com os Pastorinhos, em Fátima, naquela luz que os envolvia e que lhes penetrou no peito e na terra (cf. Memórias I, 174; 176). Como outrora em Caná, também na Cova da Iria estão presentes, enquanto convidados, Jesus, a Sua Mãe e os seus discípulos; estes últimos representados não apenas nos videntes, mas também na multidão de povo que acorria em massa, procurando também eles ficar dentro da Luz.
— Como viesse a faltar o vinho da salvação… Aqui antevemos a possibilidade da tragédia, do afastamento da plenitude da graça e da alegria que é Deus, a possibilidade da nova quebra da Aliança. Assim, num primeiro momento, os Pastorinhos têm o vislumbre do inferno, a partir da mesma luz que penetra a terra: é a Mãe novamente a antecipar-se, antes que seja demasiado tarde e as consequências do mau uso da nossa liberdade se tornem irreversíveis. Ela já lá está de mãos abertas a apontar o essencial. E, perante tal visão, “assustados e como que a pedir socorro, levantámos a vista para Nossa Senhora” (Memórias I, 177).
— Não têm vinho… diz a Mãe ao Filho.Na verdade, aindanão falta tudo, mas a Mãe pede como se já faltasse, como se fosse a hora do vazio e do nada, para que nos seja dada a plenitude, o tudo. Na Cova da Iria, a Mãe também antecipa a hora de Jesus, para completar a mínima falta de sentido, com a plenitude do sentido e da salvação, a plenitude do sentir-se amado e salvo. Assim, novamente diante do Coração Imaculado de Maria, temos o grande espelho e a medida da plenitude da graça, onde encontramos a plenitude dos mistérios de Cristo, a projetar sobre nós a plenitude da Palavra. É, por esse motivo que a Mãe continua a interpelar: “Fazei o que Ele vos disser”, atendei ao meu pedido! É o convite ao abandono total, na confiança de quem só lhe resta crer!
— Enchei as vasilhas de água até cima… Eis a mais autêntica resposta, a participação ativa e a corresponsabilidade na história da salvação, na história humana. A prontidão para arregaçar as mangas e enchermo-nos dos dons do Espírito é a mesma prontidão de se colocar em caminho como Igreja Peregrina em direção à Cruz. O amor e a fidelidade da Aliança são provados a cada dia, no fogo e no sangue, por entre as dificuldades próprias do anúncio de um reino que é já realidade, que deixa em ruínas as estruturas da nossa própria autossuficiência, para que o humano seja resgatado. Em Fátima, temos a imagem dos mártires, aqueles que se deixam morrer para não quebrar a Aliança, e cujo sangue penetrando na terra é “ecologicamente” conduzido até à Cruz de Cristo. Este sangue, em comunhão com o cálice de Cristo, é como seiva que circula na árvore da vida, é a própria criação a participar na obra da salvação. No fim do caminho estão os “dois Anjos cada um com um regador de cristal em a mão, n’eles recolhiam o sangue dos Mártires”, até que os vasos se enchessem até cima,“ e com ele regavam as almas que se aproximavam de Deus” (Memórias I, 213), dando a provar o vinho novo da bem-aventurança. Deus manifesta, assim, a sua glória, para que todos acreditem (cf. Jo 17, 21)!
Após a aparição, como compromisso, os Pastorinhos entregam-se ainda mais intensamente na defesa do Segredo, preparando-se para o testemunho-martírio, que apenas um mês mais tarde, estariam dispostos a viver. De facto, Francisco foi “o que menos se impressionou com o inferno […]. O que mais o impressionava ou absorvia era Deus, a Santíssima Trindade, nessa luz imensa que penetrava no mais íntimo da alma. Depois, dizia: Nós estávamos a arder, naquela luz que é Deus, e não nos queimávamos. Como é Deus!!! Não se pode dizer! Isto sim, que a gente nunca pode dizer! Mas que pena Ele estar tão triste! Se eu O pudesse consolar!…” (Memórias I, 145). Um segredo só o coração pode compreender. O amor de Deus é como esse oceano de fogo que arde intimamente, e que supera qualquer “inferno” da (nossa) história. Dentro da Luz deste Coração da História, vivendo como peregrinos em Igreja, somos novas testemunhas da boa-nova do triunfo do amor que, desde agora, vence todo e qualquer temor!
Filipa Pereira, asm
imagem: Tim UR/iStock by Getty Images