A história de um filho
que nunca deixou de o ser


19.01.22
PREÂMBULO
“A história de um filho que nunca deixou de o ser”
com palavras da nossa irmã Verónica Benedito na voz de Fausto Raínho Ferreira.

Uma proposta para esta semana das vocações.


Pensar e questionar a palavra “vocação” passou, passa e continuará a passar por muitos corações e de tantos modos… talvez tantos modos quantos existem os corações. Estes textos foram escritos a pensar neles: nos corações que buscam sentido e nos que já o encontraram.

É a história de um rapaz que tem sede, um filho que a certa altura da sua vida se questiona e procura quem possa responder aos seus desejos mais profundos.

É a história das suas questões, dos seus medos e das suas respostas, entrelaçada com a história dos seus pais e dos seus muitos irmãos. É uma história baseada em muitas histórias reais, daqueles que ouviram o Senhor chamar pelo seu nome e responderam com um sim generoso.

“O primeiro dia” desta história estreará hoje às 16h.

Por agora podes já ouvir o preâmbulo desta história, sem tempo e sem lugar, ou melhor, de todos os tempos e lugares.
O PRIMEIRO DIA
Da minha terra herdei a altura das colinas e a profundidade dos vales, o gosto pela vida e, mais tarde, o desinteresse por ela.

Recordo os dias banais: o primeiro raio de sol despertava os meus sentidos, fazendo-me saltar de contente em cima dos meus muitos irmãos. Calçava as botas, pegava na sachola e dava a mão ao meu pai.

Ele ensinava-me os caminhos, mostrava-me os riachos, os campos, os pomares, a cidade.

Passava o dia com ele a ver de longe o seu ofício, o ângulo da enxada, a dança da foice. Via-o colher a paciência na espera e a demorada arte do espanto. Seguia-o para onde fosse, queria fazer tudo o que ele fazia.

Ao cair da tarde, o último raio de sol trazia-me às suas cavalitas e ele pedia-me que lhe lembrasse os caminhos de volta. Eu encolhia os ombros, hesitante, porque já não sabia onde era o lugar das fontes, o lugar da espera, o lugar dos frutos nem qual era o lugar dos homens.

Guardo o olhar de minha mãe e o silêncio do seu corpo recostado à ombreira da porta a que me via chegar com as meias sujas e os lábios felizes de viver. Chamava por ela e contava-lhe os grandes feitos de ser filho: o tempo da sementeira, o adubo da terra, o negócio do mercado. O meu pai aproximava-se e ouvia-me dizer a mais certa de todas as minhas certezas: eu já sou grande como o papá.

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Muito embora não fossem iguais, os dias repetiam-se a somar rotinas ao tempo. Sem fazer as mesmas coisas, eram as mesmas coisas que eu fazia e eu era feliz. Até nascer um dia banal em que ser feliz não me bastava. Não que não desejasse a felicidade, ou que aquele feliz fosse pouco, ou menos, porque não o era. Só sei dizer que, no mais fundo de mim, não me bastava.

Nesse dia, de madrugada, a minha mãe levantou-se e eu com ela. Comemos juntos e, antes que eu fosse calçar as botas, pegar na sachola e dar a mão ao meu pai, ela estendeu-me um copo, como sempre o fazia. Mas, naquele dia, eu tive tanta sede.

Nos campos, inquietaram-me o barulho dos pássaros em debandada e a água a passar pela cedência da terra.

À noite, antes de me deitar, fui espreitar a minha mãe à cozinha. Ela ficava até tarde a coser as meias do meu pai e os bolsos dos meus irmãos. Enquanto isso, rezava o terço e cantava. Sentei-me, junto aos seus pés, como nunca o tinha feito, e perguntei-lhe porque é que existimos. Ela encolheu os ombros e lembrei-me que também ela era filha, e que podia ainda não saber dizer o lugar dos homens. Ou talvez só me quisesse fazer compreender qual era o lugar da fonte e qual não era o seu lugar.

Os dias passaram, e eu repeti o meu corpo naqueles caminhos uma e outra vez. Também a sede se repetiu. Porque é que não passa? E o que faço com ela?

Texto de Verónica Benedito, asm
Voz de Fausto Raínho Ferreira


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O SEGUNDO DIA
Do alto da minha inexperiência asseguro que a sede parece ser o que há de mais extraordinário e terrível na vida dos filhos. Extraordinário porque os abre ao desejo e à procura e à excedência do que sempre foi assim. Terrível porque não sabem nomear o que falta e são muitas as portas que se fazem fontes. A qual bater? À mais segura? À mais fácil? À mais próxima?

Bati à porta da fuga. Quis ir para longe.

Pus a mala às costas e recebi o beijo da minha mãe, o brilho de água nos seus olhos e um último aceno. Faltavam dez minutos para o comboio partir.

O meu pai caminhava a meu lado, como quem quer chegar atrasado. Na verdade, também eu não tinha pressa e embora não a tivesse, tinha-a, e em tão desmedida força que, por momentos, esquecia a vertigem de avançar.

Avistei o muro da escola onde tinha aprendido a ciência e o erro. Pudesse eu entrar um minuto, ao menos, sentar-me na segunda carteira da terceira fila e perguntar o que nunca perguntei. Porque faltavam dez minutos para o comboio partir e eu já não sabia o que era ser grande como o meu papá.

Quando chegámos, ele olhou-me como que a tirar o medo aos meus olhos e tirou do seu colete desbotado ao sol um papel velho e machucado: uma última recomendação. Como lhe dizer que não queria crescer? Que era filho e não um homem? Que ainda tinha medo do senhor das carroças, da noite e suas sombras… Adeus pai. Adeus filho.

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Carregava a mala às costas e o peso de um bilhete aterrador. Não chorava: queria parecer homem e não um filho. Foram quinze Primaveras a acumular meias, força e bravura. Foi o segundo de uma buzina a pilhar a reserva para aquele duro Inverno.

Ele escreveu:

Aprende o caminho da ida, mas não esqueças o caminho de volta.

Do teu pai, que sempre te deu a mão.

Carregava a mala às costas e uma história feita de tudo. Como a sopa da minha mãe: feita do que havia e do que faltou; do que ela conhecia e do que nunca chegou sequer a nomear; feita de lumes brandos e fortes, fervuras e rescaldos, vigilância e descuido. Uma história feita de cru; feita de tempo; feita de mim.

Seria aquilo o que eu precisava? Uma porta que se fechou, um arranque, a mudança da paisagem, a queda do meu mundo? Não sei. Mas sei que foi pavoroso viajar só, sem saber quem era o homem aperaltado à minha frente, nem o fim da sua existência. Mas, sobretudo, foi pavoroso viajar só, sem saber ainda bem para que servia eu.

Sim, eu escolhi a porta do corte. Larguei a mão do meu pai, deixei os meus irmãos e a minha mãe. Ia para onde queria, fazia o que me apetecia. -Talvez minta. Não ia sempre para onde queria, nem tinha tudo o que desejava, no entanto, gostava de pensar que sim. Mas, quando a noite chegava e eu estava só, terrivelmente só, não tinha como não lembrar a falta e o desejo de ser maior.

Texto de Verónica Benedito, asm
Voz de Fausto Raínho Ferreira


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O TERCEIRO DIA
Do alto da minha inexperiência, asseguro que a sede pareceu-me ser o que tive de mais extraordinário e terrível. Extraordinário porque reencontrei a verdade e me desiludi: eu não sou suficiente para me bastar. Terrível porque ela me fez dependente: se eu não me bastei a mim mesmo, quero saber quem basta.

Não encontrei descanso na fuga, no corte. Então, fui encontrar coragem para bater a outra porta. Sim, fui encontrar coragem, porque ela é precisa para voltar atrás e recomeçar. Abri a porta da procura e senti saudades de dar a mão ao meu pai, para correr caminhos e aprender o lugar das fontes e o lugar dos homens, o lugar da espera e só depois o lugar dos frutos.

Lágrimas: a única coisa de que fomos capazes no dia em que voltei. Do alto da minha ignorância, afirmo e atesto que a sede do filho é o que há de mais extraordinário e terrível na vida dos pais. Extraordinário, pela alegria: aquele a quem tanto amaram, e a quem tudo deram, cresceu e busca qualquer coisa que nem sabe dizer. Terrível, pela impotência: ela é o preço que pagam pela sua liberdade e, por isso, experimentam o tormento de o ver partir, às vezes enganado, sem garantia de que vai voltar ou ser feliz.

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Nesse mesmo dia, enquanto comíamos, um dos meus irmãos contou-me uma história que também ele ouvira contar. A história de um pai que tinha dois filhos. Um deles, o mais novo, foi-se embora para uma terra longínqua. Ia para onde queria, fazia o que lhe apetecia, até não ter mais nada. E foi nesse momento que se lembrou do seu pai e quis ao menos ser tratado como um dos seus trabalhadores, que comiam muito melhor que ele. Pôs-se a caminho e quando vinha, ainda longe, o pai viu-o e correu ao seu encontro, enchendo-o de beijos. Depois, mandou calçar-lhe os pés, pôr-lhe um anel no dedo, deu-lhe a melhor roupa e fez-lhe uma festa.

Era a minha história. E eu quis saber mais. Então, enquanto lavávamos a loiça, fui ter com o meu irmão e pedi-lhe que me contasse como foi, depois, com aquele filho. Mas, ele encolheu os ombros, e, olhando para um crucifixo que por ali havia, disse-me que o primeiro a contar aquela história não disse mais.

Quem é o contador de histórias? E porque está assim pregado numa cruz?- perguntei. A primeira pergunta foi fácil de responder: disse-me que se chamava Jesus. A segunda foi demorada: disse-me que era uma longa história.

Mas eu tinha tempo. E vontade de saber. Então, fomo-nos sentar sobre a relva verde e eu estava ali, a escutar, atento. Até ele me contar a história de uma mulher que foi ao poço. Foi porque tinha sede, contudo, encontrou um homem com mais sede ainda e uma desmedida vontade de dar a beber.

E eu senti outra vez que era a minha história. Que as palavras da mulher eram minhas e que minha era a sua sede. Que as suas perguntas eram as minhas perguntas. Que a sua vida era a minha vida. Que Ele tinha sede de mim e que eu tinha sede da d’Ele e da água que Ele tinha para dar.

Nesse instante, só desejava deixar o cântaro como ela e seguir atrás dele como o fizeram aqueles que foram comprar alimentos. Só não sabia como, nem quando, nem onde.

Texto de Verónica Benedito, asm
Voz de Fausto Raínho Ferreira


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O QUARTO DIA
Decidi perguntar ao meu irmão como é que as pessoas seguem Jesus.

Ele devolveu-me a pergunta e eu disse-lhe o que pensava: a mãe reza o terço. O pai vai à missa e tira o chapéu, no campo.

Ele riu-se. Sabes o que faz o pai quando os sinos tocam ao meio dia? Ele interrompe a pressa do seu labor, tira o chapéu e diz baixinho: Meu Senhor, que és maior que o meu trabalho. E sabes o que diz a mãe, quando pega no terço? Ó Senhora, ensina-me a ser filha para que eu aprenda a ser mãe.

Apeteceu-me perguntar a toda a gente o que diziam baixinho! O que dizem os pais, à noite, sentados na sala? O que diz o meu irmão quando passa pela porta da igreja e faz o sinal da cruz? O que diz o padre quando se ajoelha diante do sacrário? O que é que o frei sussurra enquanto cava a terra? E porque é que ele olha tantas vezes para o Céu?

O meu irmão acrescentou que havia muitas formas de O seguir e que nenhuma era a mais certa.

Confesso que essa parte não foi lá grande ajuda… Onde estão as respostas fáceis? O que é feito das decisões imediatas e sempre acertadas? Parecia-me tão fácil quando o meu pai chegava de manhã e dizia: hoje vamos colher as maçãs em vez de arar. Parecia-me tão fácil a sua voz segura. Porque é que a minha treme?

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Quero perguntar como devo seguir Jesus, mas não o faço. Tenho vergonha e medo de perguntar porque verbalizar é já comprometer-me e eu não sei quais são as cláusulas do contrato.

Parecia-me tão fácil aquela firmeza do meu pai… mas havia sempre qualquer coisa nos seus olhos cansados. Talvez uma vigília, não sei se um medo.

Subi a um pequeno monte. O monte que o meu avô subia ao cair da tarde. Ele ficava, como que suspenso, naquele lugar alto, a olhar demoradamente o campo e a cidade. Suficientemente perto para não esquecer quem era. Suficientemente longe para ganhar a distância justa da realidade.

Foi ali, naquele monte, que ganhei o desassombro, ou pelo menos, o desejo dele. A distância lembrou-me que sou filho. Ela mostrou-me que preciso de alguém com quem aprender a escutar a voz do Alto e a minha voz.

Fui procurar de novo o meu irmão: ele já tinha ajudado muitos a fazê-lo. Era experiente e sensato.

Marcávamos um dia e uma hora. Ele perguntava-me pela minha sede e desejávamos perceber de onde vinha e para onde me levava. Contei-lhe o que andava a dizer baixinho: agora que te tenho, onde me queres, Senhor? Onde queres que eu seja pomar? Onde me queres no lugar dos homens?

Foram vários os dias e as horas marcadas: as conversas em que avançámos, as que não concluímos nada. As conversas em que eu era todo coragem e as que não encontrava razões de a ter. Às vezes havia respostas, outras vezes acabávamos com mais perguntas. Numas ríamos, noutras chorávamos. Mas em todas elas estava o meu desejo de ouvir e responder e o seu desejo de ajudar a ouvir e de ajudar a responder.

Hoje foi a última conversa. Ao despedirmo-nos ele disse: agora que O tens e sabes onde te quer; agora que O tens e queres servir, guarda a paz que te deu e não olhes para trás.

Texto de Verónica Benedito, asm
Voz de Fausto Raínho Ferreira


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O QUINTO DIA
Hoje foi dia de festa no mais íntimo de mim! Como se o Senhor me dissesse: tu, vem e segue-me e eu não quisesse outra coisa senão ir de uma só vez. Como se Ele me perguntasse: amas-me? E eu respondesse oh Senhor, tu sabes tudo, bem sabes que te amo, ainda que todo frágil e incerto.

Carrego a mala às costas e um presente disponível para a surpresa, provido da excelência e do rigor com que um dia fui chamado pelo nome. Será isto crescer?

Carrego em mim a sede, os pássaros em debandada e o barulho da água a passar pela cedência da terra.

Para seguir o Senhor, confiei. É da confiança que se fazem os filhos.

Por isso largo, deixo, recebo, encontro, … Largo o acessório para receber o essencial. Perco algumas rotinas para ganhar novos hábitos. Deixo o berço para alargar o coração a novos laços, a novos compromissos, a novas horas.

Vão-se os medos para ganhar certezas. Vão-se as certezas para ganhar a fé.

Para seguir o Senhor, caminho acompanhado. Preciso de alguém que me lembre as Suas histórias e me ajude a caminhar pelas veredas da verdade.

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Para seguir o Senhor, falo com Ele e digo baixinho: Meu Senhor, que a mim Te deste, ensina-me a ser filho e a servir-Te em espírito e verdade. Quero habituar o coração a correr pelos Teus caminhos, seja nos dias claros, seja nos dias turvos, nesses em que me esqueço que um dia tive sede e que encontrei a fonte. Melhor, que um dia tive sede e a fonte me encontrou.

Por fim, para seguir o Senhor, guardo a paz que me deu e sigo em frente, para O alto.

Texto de Verónica Benedito, asm
Voz de Fausto Raínho Ferreira


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